Psicossociais na Medicina Ocupacional: Conduta e Evidências
Os riscos psicossociais vêm ganhando cada vez mais espaço nas discussões sobre saúde e segurança do trabalho. A atualização da NR-1 e a crescente preocupação com a saúde mental dos trabalhadores trouxeram à tona a necessidade de identificar e gerenciar esses riscos com mais rigor e profundidade.
Por Que Falar Sobre Isso Agora?
Embora os riscos psicossociais sempre tenham existido, a negligência histórica sobre esses fatores começa a ser superada. Atualmente, doenças relacionadas à saúde mental já representam a segunda maior causa de afastamentos por doenças ocupacionais no Brasil, atrás apenas das dores osteomusculares.
A pandemia e o aumento do trabalho remoto também impulsionaram a discussão, revelando contextos de sobrecarga emocional e organizacional até então pouco monitorados.
O Psicossocial Está em Tudo
Os riscos psicossociais não estão separados dos demais riscos ocupacionais — eles estão inseridos neles. Um eletricista que trabalha em altura, por exemplo, pode não ter carga horária excessiva, mas sofre estresse constante devido ao risco de queda ou choque elétrico. Isso já configura um risco psicossocial.
Ignorar esse tipo de risco significa manter o trabalhador exposto a adoecimentos evitáveis — e perder a chance de melhorar o desempenho e o clima organizacional.
O Que Mudou com a Nova NR-1?
A nova redação da NR-1, vigente desde 26 de maio, traz exigências claras sobre a gestão contínua de riscos, incluindo os psicossociais. Apesar de não estar sujeita a multas imediatas, a norma já pode ser cobrada por meio de ações orientativas durante fiscalizações.
Além disso, a NR-17, que trata da ergonomia, já exigia atenção às características psicofisiológicas dos trabalhadores, o que naturalmente inclui os aspectos psicossociais. Portanto, esse não é um tema novo, mas agora conta com diretrizes mais explícitas e práticas de implementação.
Avaliação Ergonômica Preliminar (AEP) e Psicossociais
Com a exigência de uma abordagem integrada, a Avaliação Ergonômica Preliminar (AEP) surge como uma etapa essencial dentro do PGR. Nela, o profissional identifica pontos de atenção que podem demandar uma Análise Ergonômica do Trabalho (AET) mais aprofundada.
Segundo Laila, situações críticas, como mobiliário inadequado, carga de trabalho excessiva ou ritmo acelerado de produção, já exigem ações imediatas. Em casos menos urgentes, a AEP pode definir um plano de ação que inclua posteriormente uma AET focada nos riscos psicossociais.
Ferramentas Validadas: Evite Improvisações
Uma das maiores dúvidas dos profissionais de SST é sobre qual ferramenta utilizar para mapear os riscos psicossociais. A recomendação é clara: use apenas instrumentos validados cientificamente. Entre os principais, destacam-se:
HSE Indicator Tool (HSE-IT):
Desenvolvido pelo Health and Safety Executive do Reino Unido, é um dos mais utilizados no mundo. Avalia aspectos como controle, suporte, demanda e relacionamentos.
Proart
Ferramenta brasileira baseada na psicodinâmica do trabalho, com foco na relação entre sofrimento e prazer.
Job Content Questionnaire (JCQ)
Baseado no modelo demanda-controle, avalia exigências psicológicas e autonomia.
COPSOQ
Ampla cobertura de fatores psicossociais, com validação em diversos países, incluindo o Brasil.
Todas essas ferramentas exigem conhecimento técnico para interpretação correta e devem ser utilizadas dentro de uma estratégia metodológica clara.
Avaliação Psicossocial Vai Muito Além de Um Questionário
Apesar das ferramentas quantitativas serem úteis, a análise dos riscos psicossociais também exige métodos qualitativos, como entrevistas, observações e grupos focais. A escolha da abordagem deve considerar:
- Porte da empresa;
- Escolaridade dos trabalhadores;
- Complexidade das atividades;
- Nível de confiança entre trabalhadores e avaliadores.
Como Identificar e Gerenciar Riscos Psicossociais no PGR: O Papel Estratégico da Medicina do Trabalho
A gestão de riscos psicossociais nas empresas é um dos maiores desafios enfrentados pelos profissionais de Saúde e Segurança do Trabalho (SST). Com a entrada em vigor da nova redação da NR-1, especialmente o capítulo 1.5, que trata do Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO), os profissionais da área passaram a ter maior responsabilidade na identificação, avaliação e controle dos fatores psicossociais. Mas como fazer isso de forma eficaz e documentada?
Intervenções Preliminares: Quando Agir Imediatamente
Em muitas situações, não há tempo hábil para realizar um aprofundamento completo antes de implementar medidas de controle. Quando há sinais claros de sobrecarga, movimento repetitivo ou aumento de atestados médicos, é necessário agir. A própria NR-17 prevê ações paliativas como pausas e rodízios, que podem ser adotadas provisoriamente enquanto se aprofunda a análise ergonômica.
Contudo, é fundamental que essas ações emergenciais estejam alinhadas ao Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). O simples apontamento de um risco sem detalhamento técnico pode comprometer a eficácia do programa.
O PGR Como Programa Vivo
A grande virada de chave que a nova NR-1 propõe é a mudança de mentalidade: o PGR não é apenas um documento estático, mas um programa vivo de gestão contínua. Isso significa que:
- Os riscos precisam ser constantemente reavaliados;
- As medidas de controle devem ser executadas, monitoradas e ajustadas;
- As ações devem refletir a realidade dinâmica do ambiente de trabalho.
Como lembrou Michele, “gerenciamento não é levantamento. O PGR precisa ser acompanhado em tempo real.”
PGR e Avaliação de Riscos Psicossociais: Mais que uma Formalidade
O PGR exige mais que a identificação de perigos. Ele demanda:
- A descrição dos trabalhadores expostos;
- A probabilidade de ocorrência;
- A severidade dos danos;
- As medidas de prevenção adotadas;
- O plano de ação com base em evidências.
Indicar uma Exposição ao Trabalho (ET) sem essa análise aprofundada pode ser uma falha grave. Os profissionais devem evitar medidas genéricas e recorrentes como “treinamento da CIPA” ou “fornecimento de EPI” que, sozinhas, não representam ações eficazes frente a riscos psicossociais.
A Importância dos Indicadores da Medicina do Trabalho
A avaliação dos fatores de risco psicossociais pode ser feita por meio de entrevistas semiestruturadas, questionários qualitativos e observação clínica. A anamnese médica, se bem conduzida, é uma excelente oportunidade para captar informações valiosas.
É importante que os questionários psicossociais garantam o sigilo dos trabalhadores para obter respostas fidedignas. Ferramentas como o perfil epidemiológico (como disponível no software Madu) permitem gerar relatórios por grupo, respeitando a confidencialidade e apoiando a atuação tanto da medicina quanto da segurança do trabalho.
Comunicação, Cultura Organizacional e Envolvimento da Alta Gestão
Uma comunicação falha dentro da empresa é um risco psicossocial por si só. A falta de transparência em mudanças, a ausência de canais seguros para denúncias e a repressão à expressão dos trabalhadores são sinais claros de ambientes adoecedores.
A gestão de riscos psicossociais deve envolver todas as instâncias: RH, engenharia, CIPA, SESMT, alta direção e consultorias externas. E, mais importante: deve haver vontade real de transformar o ambiente de trabalho.
Home Office e os Desafios da Avaliação Remota
Sim, trabalhadores em home office também devem estar contemplados no PGR. A avaliação pode ser feita com apoio de videoconferência ou entrevistas a distância, sempre com autorização do trabalhador. Elementos ergonômicos como tipo de cadeira, altura do monitor e ambiente de trabalho podem (e devem) ser avaliados remotamente. Para os fatores psicossociais, o diálogo ativo é a principal ferramenta.
Documentação e Evidências para Auditorias
Não basta declarar que o risco psicossocial foi avaliado. É preciso comprovar tecnicamente como essa análise foi feita. Relatórios descritivos, registros de entrevistas, critérios utilizados para definir probabilidade e severidade — tudo isso deve estar documentado de forma auditável. A matriz de risco pode variar entre os tipos de riscos (químicos, físicos, ergonômicos), mas os critérios utilizados devem ser bem descritos.
Se nenhum risco psicossocial for identificado, isso também deve constar nos documentos, com justificativa técnica clara, evidenciando o método de avaliação utilizado.
Integração entre PGR, PCMSO e ASO: Uma Cadeia Coerente
Os riscos mapeados no PGR devem ser refletidos no PCMSO e, por consequência, no ASO. A coerência entre os programas mostra maturidade na gestão de SST. Evitar lançar riscos por medo de “assumir culpa” é um erro comum. O risco existe independentemente de estar no documento — e omitir pode ser ainda mais prejudicial juridicamente.
A avaliação clínica no PCMSO, especialmente por meio da anamnese, é uma ferramenta poderosa de vigilância à saúde. Mesmo sem exames complementares específicos, o médico pode (e deve) monitorar sinais de adoecimento relacionados aos fatores psicossociais.
Conclusão
A gestão dos riscos psicossociais exige sensibilidade, técnica e, sobretudo, compromisso com a saúde dos trabalhadores. A medicina do trabalho desempenha papel estratégico nesse processo, oferecendo dados, escuta qualificada e uma visão clínica que complementa a atuação da segurança do trabalho.
Profissionais de SST, consultorias e clínicas devem caminhar juntos nessa jornada, promovendo ambientes saudáveis, produtivos e sustentáveis.
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